Se felicidade fosse rotina, a gente buscaria outra coisa pra correr atrás

Reportagens Especiais
5 min readDec 23, 2020

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Gessica Amorim

Para escrever sobre felicidade a partir do que eu vejo, sou e sinto, tentei buscar internamente imagens de coisas, momentos, cheiros, sons e sabores que me fazem sentir feliz. Também procurei olhar com mais calma e com mais atenção para o que está à minha volta, capturando conforto e alegria, para observar e descrever aqui. Nos últimos dias, pensando nas pessoas que amo, nas coisas que faço com satisfação, no que eu gosto de ver, ouvir e comer, eu organizei uma lista com 5 itens que dão nome a parte do que é a minha felicidade.

Quero apresentar, aqui, a minha lista de itens “serotonínicos”:

1: Voltar, sempre, pra casa

Eu considero felicidade, ter para onde voltar, de onde quer que a gente venha, com o que quer que a gente traga. E eu sou feliz quando pareço carregar no corpo e na mente o cansaço de quem rodou o mundo sem tomar fuga, e posso me recompor chegando aos lugares onde deixei gente que eu amo e quero perto de mim. De vez em quando, não sendo possível voltar fisicamente, me basta acessar o que tenho na memória. Penso em cada coisa e cada pessoa, fazendo a alma viajar de volta até o meu lugar. A vantagem de ir é poder, sempre, voltar.

Ser jornalista me permite superar minha timidez e chegar perto das pessoas. Seu Luiz, por exemplo

2: conhecer gente e história

Preciso dizer que a vontade de ser jornalista sempre foi o meu salvo-conduto para me aproximar de forma segura das pessoas e de suas histórias, sem cair no desmantelo do meu silêncio e timidez. O jornalismo me dá impulso, fala e coragem para andar, buscar e, na maioria das vezes, ser feliz me relacionando com o que observo e me chama a atenção por onde ando.

Esses dias, mesmo, fui feliz conversando com Luiz Barbosa do Amaral, morador do distrito de Sítio dos Nunes, no sertão do Pajeú pernambucano. Ele tem 59 anos e perdeu a visão aos 2. Luiz Cego, como é conhecido na região, me contou que a razão de ter parado de enxergar vem de um banho morno que sua mãe lhe deu, à noite, e, em seguida, o levou para o sereno. Talvez não haja uma lógica científica que aproxime banho morno e sereno, numa situação que leve a esse tipo de consequência, mas é o tipo de coisa que me interessa ouvir.

Essa foi a primeira vez que conversei com Luiz. Desde que me entendo como gente, sempre o vi caminhando pelas ruas de Sítio dos Nunes sem errar um passo ou topar em qualquer coisa. Fui até a sua casa sem nenhum contato prévio e sem pauta (não acontece sempre, Fabi, acredite). Queria conversar. Durante os poucos minutos de nossa conversa, Luiz, que mora sozinho e faz questão de provar a sua autonomia, também me falou sobre o café que sabe fazer, o ovo que sabe fritar e o cuscuz que sabe cozinhar. Disso tudo, ele conhece o cheiro, o sabor e a textura.

Quase indo embora, perguntei a Luiz se ele era feliz. Ele me respondeu que sim. Quis saber se ele poderia me dizer o porquê. Sem espanto e sem demora, me disse que é feliz porque está vivo, tem saúde e tem o que comer. Eu penso que a abertura que encontrei para ir até a sua casa, disposta a falar sobre sua vida, vem do que tenho aprendido sobre jornalismo, mesmo. De repente, eu estava feliz percebendo como é bom conhecer e ouvir gente.

Voltando de uma pauta, cheia de presentes vindos da roça

3: imagens

Eu tenho uma câmera fotográfica. Isso me deixa feliz. Com ela, eu posso guardar a imagem de muitos rostos, muitas coisas, muitos lugares. Eu sou doida, mesmo, por imagem. Gosto de congelar pelo menos um instante das coisas que eu vejo acontecendo, existindo. Ela está sempre lá, comigo, onde quer que eu esteja. É uma boa companhia.

Se eu ouvisse esse LP em vinil, no toca-discos, ele estaria furado

4: ouvir

As vozes de Mãe, de Vó, de Meu Pai, de Monique, de meus amigos, de Elomar, de Zé Ramalho, de Marinês, de Clara Nunes, de Gonzaga, de Caetano, de Sérgio Sampaio, de Gil, de Alceu, de Cátia de França, de João do Vale, de Elba, de Gonzaguinha, de Ednardo, de Xangai, de Marinês, de Amelinha, de Tom Zé, de Clementina de Jesus e de Evaldo Braga, me fizeram feliz este ano. Luiz Gonzaga falando de “Samarica Parteira” me animou muitas vezes. Elomar cantando “Curvas do Rio” me emocionou outras tantas. “Mote das Amplidões”, de Zé Ramalho, eu ouvi mais de cem vezes, segundo a retrospectiva do Spotify. E nem falei aqui do latido de meu cachorro, aperreado com gato em cima da casa, e nem do miado de meu gato exigindo o que comer a toda hora. Tudo isso que é som também me faz feliz.

Mãe capricha no caldo da galinha e ele fica assim, espalhado sobre os caroços macios do xerém

5: alimento

De barriga cheia, eu falo da felicidade que é ter um prato de xerém ou arroz da terra com galinha, mugunzá salgado ou maxixada, na mesa. Em casa, é dia de domingo que mãe prepara. Já de manhã, a comida está pronta. Acordo e, pelo cheiro, já sei o que tem nas panelas. O almoço é às 11h em ponto, mas, se houver fome, 10h30 tá na mesa. Quando tem galinha, Mãe capricha na graxa do caldo. Parece de capoeira.

Esse ano, em janeiro, no dia de meu aniversário, encomendei a ela um caldeirão de xerém e outro de galinha. Pra não dizer que estou mentindo, quem foi convidado, confirma que hoje sabe o que é xerém bom e animado. Esse, só dona Fátima para acertar o ponto do caroço e me dar essa alegria.

Felicidade é mesmo coisa inconstante e que a gente não sabe o tanto que pode durar a cada vez em que aparece. Tudo o que escrevi aqui parece ter hora certa pra trazer alegria. Não é todo dia. Se felicidade fosse rotina, acredito que a gente buscaria outra coisa, com outro nome, pra correr atrás e querer sempre.

Me fez feliz, esse exercício de procurar felicidade ao meu redor e listar parte dela aqui. Quero que, na hora da agonia, eu consiga percebê-la perto, se perto ela estiver. Fui feliz mais uma vez, lembrando de coisas boas e bonitas que a vida deixou passar por mim.

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projeto de extensão do Observatório da Vida Agreste (OVA), Curso de Comunicação Social da UFPE/Centro Acadêmico do Agreste (CAA)