"Como posso ser machista se sou gay?"

Reportagens Especiais
17 min readDec 22, 2021

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Os relatos de 4 mulheres de diferentes classes, cores e sexualidades mostram a misoginia de homens gays, algo bastante naturalizado, mas pouco discutido. E ainda: o que é esse ódio às mulheres e como a cultura pop contribui para sua disseminação

Seán Faye, no site Broadly, também escreveu um artigo falando sobre preconceito com homens afeminados e mulheres. Você pode acessar o texto, traduzido pelo site Lado Bi, aqui (ilustração: Lado Bi)

Por Nicoly Grevetti

Como mulheres, sabemos que o machismo e a misoginia fazem parte do nosso cotidiano. Se você é mulher e não os percebe em cada fresta, é porque essas práticas estão tão incrustadas na nossa sociedade que são tidas como normais.

Em 2020, o Brasil registrou um feminicídio — homicídio de uma mulher que segue um histórico de violência anterior — a cada 6 horas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O IBGE identificou, em 2019, uma diferença de 26,5% entre o salário de homens e mulheres, sendo o nosso o mais baixo. Em 2021 chegamos a pior marca de desemprego desde 2016, chegando a 17,9%, em oposição aos homens que chegaram a 12,2%, também segundo o IBGE.

Em cada dado apresentado anteriormente, há milhares de micro agressões que fazem parte do pacote de ser mulher em uma sociedade falocêntrica — centrada no gênero masculino. As raízes misóginas são tão profundas que mesmo em locais onde deveria-se desconstruir os preconceitos sociais constantemente, elas ainda permanecem presas ao solo.

Não costumamos associar machismo ou os números acima a homens gays ou outros presentes na comunidade LGBTQIA+, pois eles também são vítimas de preconceitos sociais. Porém, isso não os isenta de também cometerem agressões verbais e psicológicas contra mulheres.

Aqui, nesta reportagem, Karol, Laura, Ingrid e Cinthia compartilham suas histórias de agressões e assédios vindos de homens dentro da comunidade LGBTQIA+.

Misoginia, o monstro. Ilustração de Nicoly Grevetti.*
Misoginia, o monstro. Ilustração de Nicoly Grevetti. *

1. Karol: Esse lugar é meu

É muito comum que mulheres, sejam héteros ou queer — termo que engloba todas as minorias sexuais e de gênero-, frequentem espaços e baladas voltadas ao público LGBTQIA+, pois sentem que ali é um local seguro onde é menos provável que sejam assediadas e tocadas sem consentimento. Karol Lima, 24, é uma mulher pansexual — pessoa que sente atração por todos os gêneros ou independente de gênero — e sempre foi a esses lugares, mas nem sempre se sentiu bem-vinda.
Ela recorda uma memória que ficou marcada dentro de si. No carnaval de 2020, antes do surto de contágio do coronavírus, Karol, acompanhada dos amigos, foi para um bloco na rua 13 de Maio, nos Quatro Cantos, em Olinda, conhecida por ser a rua mais colorida da cidade e trazer em si muita diversidade.

“A intenção dele, mesmo que não tivesse sido clara, existia e ia pelo caminho da misoginia”

No dia, com a rua muito movimentada, passou por ela um grupo de homens LGBTQIA+. Um deles chamou sua atenção e a elogiou, dizendo que ela era linda e estava muito bonita. Mal ela agradeceu e um dos integrantes do grupo, que vinha logo atrás, jogou um punhado de glitter em seu rosto, que entrou nos seus olhos e narinas e a desnorteou completamente.

Eles seguiram na rua cheia de gente e Karol só ouviu ao longe o homem que a elogiou perguntar “amigo, por que você fez isso?”. Uma boa pergunta, já que ela mesmo não conseguia entender. Foi por ciúmes, inveja ou apenas uma agressão gratuita? Ninguém do seu grupo havia entendido qual foi a motivação. Sentou-se no chão e ficou sem nenhuma vontade de continuar a festa

Independente do motivo, aquele homem se sentiu no direito de agredir Karol. “Ele quis me magoar, me agredir, ou talvez quisesse dizer que aquele ambiente não era meu. A intenção dele, mesmo que não tivesse sido clara, existia e ia pelo caminho da misoginia”.

Karol questiona o papel do feminismo na comunidade, afirmando que o movimento e suas pautas tem pouquíssimo espaço. “O G é maior que todos os outros dentro da sigla e ele é composto por homens”, comenta. Justamente por isso homens gays não são isentos de cometerem atos machistas e misóginos. Mas essa ainda é uma pauta difícil de ser abordada dentro da comunidade, já que há uma recusa desses homens de se reconhecerem como reprodutores desses comportamentos. Afinal, se você já sofre a sua cota de preconceito, é impossível que você seja o vetor de outros estigmas sociais, certo?

2. Laura: "ouvi: 'eu não sou como os outros homens' "

Não é fácil nascer uma mulher lésbica em um mundo que ama ver mulheres transando na tela do computador, mas, fora dela, xinga, agride e mata. Hoje, com 19 anos, assumida e ativa na comunidade gay, Laura já teve mais de uma experiência com a misoginia de homens queer. Em uma delas, chegou a ser ameaçada por um amigo próximo que se identificava como homem bissexual — e que também via Laura como propriedade sua.

Aos quinze anos, a ainda menina mudou para outra escola. Para seu alívio, reencontrou um grupo de amigas da infância. Através delas, a garota ficou muito próxima e desenvolveu uma grande amizade com um colega que descobriu ser bissexual. Conversavam muito e o tempo que passavam juntos era sempre agradável.

“Ele cismou que ia ficar comigo e todas as minhas amigas sabiam, nenhuma delas me avisou.”

Mas tudo mudou quando esse amigo confessou que nutria sentimentos e pediu para ficar com ela. Na época, Laura ainda se identificava como uma menina bissexual, mas ainda assim, não correspondeu os sentimentos do colega de escola.

Não queria. Não se sentia pronta. Essas foram suas respostas e bastaram para ele, como deveriam bastar. Em sua frente, seu amigo foi compreensivo. Em suas costas, confessou a uma amiga em comum que tinha um plano para beijar Laura à força.

“Ele cismou que ia ficar comigo e todas as minhas amigas sabiam, nenhuma delas me avisou.” Estudante do ensino integral, Laura aproveitou uma aula vaga para tirar um cochilo. Quando acordou, ainda um pouco sonolenta e vulnerável, teve o rosto agarrado em uma tentativa de um beijo forçado. Desvencilhou-se e saiu em meio a fúria e a sensação de ter sido violada.

Afastou-se de todos que acreditava que lhe faziam mal. Que amigas eram essas que não achavam grande coisa alguém violar o seu corpo? Sentia-se incapaz de ficar perto dele. “Me perguntava: o que eles tem comigo para quererem me desrespeitar de todas as formas?”.

Quando o ano acabou e as férias se passaram, seu assediador mudou de escola. Laura acreditou piamente que o inferno tinha acabado. Depois de meses sem ter contato com o rapaz, recebeu mensagens de um número desconhecido. A pessoa identificou-se como sendo seu ex-colega e alertou a moça que parasse de falar para os outros que a havia assediado, pois ela estava mentindo.

A xingou de diversas formas e disse que Laura merecia apanhar na cara. Além disso, a ameaçou dizendo que iria aparecer em sua casa com os amigos para espancá-la.

Ficou doente e não saiu mais de casa. Deixou de frequentar as aulas. Agora ela ficava a tarde toda sozinha e temia pela sua segurança, já que o assediador sabia onde ela morava.

Conversou com seus pais e pediu que fizessem um boletim de ocorrência contra o jovem, garantindo, pelo menos, que ele não chegasse perto de sua residência. Sua mãe acatou o pedido, pediu prints das conversas e fotos do rapaz e afirmou que iria na delegacia, mas não queria que Laura fosse com ela.

Não queria que fosse, pois mentiu. Não foi a lugar nenhum. Ao invés, ligou para o tormento de sua filha e pediu encarecidamente que ele parasse de ameaçá-la. Laura mais uma vez foi traída e teve assistência negada. Tão nova já sentia medo e aprendia que era difícil achar um lugar que pudesse estar bem nesse mundo.

Ela prometeu ao seu assediador que não ficaria calada. Teve coragem pra bater de frente e felizmente nada de pior aconteceu. Hoje, a estudante compartilha essas histórias para alertar como a mulher nunca está livre do machismo, independente do lugar que ela ocupe na sociedade. Não importa quão desconstruído um homem possa ser, independente de sua sexualidade, ele pode reproduzir atitudes machistas que zombam e negam o direito da mulher de ter poder sobre seu próprio corpo.

3. Cinthia e o "nossa, que cheiro de peixe!"

O ser humano é sociável, passamos grande parte da nossa vida em grupos. Esses grupos mudam conforme nossas fases e algumas vezes nos moldamos para nos encaixar neles. Cinthia teve contato com a comunidade LGBTQIA+ muito jovem pois sua irmã tinha uma namorada. No ensino médio, conheceu mais pessoas da comunidade e se engajou em ações no colégio integral que estudava

A garota tinha um amigo, assumidamente gay, que frequentemente pegava em seus seios sem sua permissão, deixando-a desconfortável. Outras vezes, fazia gestos de nojo sempre que deitava com a cabeça em suas pernas. “Ele dizia que tinha nojo de vagina, que nasceu de cesárea para não passar nem perto”.

Ela tinha duas opções para não passar o recreio sozinha: ficar nesse grupo diverso com esse colega desrespeitoso ou com a turminha evangélica, onde também era aceita, mas temia que fossem preconceituosos com sua irmã. Ela escolheu o primeiro, o grupo dos excluídos, como ela mesma era e nunca falou nada, como medo de ser barrada desse também.

“Ele disse que não era pra me sentir desconfortável, já que com ele não tinha perigo”

Hoje, com 23 anos, Cinthia sabe muito bem quem é e não fica calada. Recentemente, na faculdade, passou pela mesma situação. Um homem gay, muito bem quisto e bem conhecido no campus, apalpou seus seios no ônibus. “Eu falei que estava estressada, pra ele não fazer mais porque eu não me sentia bem. Ele disse que não era pra me sentir desconfortável, já que com ele não tinha perigo.”

O colega ficou de cara feia e nunca mais falou com ela além do “bom dia, boa tarde”. A estudante afirma que ele fazia isso com outras amigas, o mesmo caso do menino do colégio. Ela enxerga esse comportamento como um meio de forçar uma intimidade que não existia.

Demorou algum tempo para Cinthia perceber que as atitudes desse amigo do ensino médio eram machistas e misóginas. Para ela era normal, achava graça e não via maldade. “Ele era engraçado. Na época, tinha uma novela em que havia um personagem gay chamado Félix, que agia de um jeito parecido. Achava que era coisa boba do cotidiano” (você pode entender mais sobre misoginia dentro das produções audiovisuais mais a frente, na matéria “Onde Aprendemos?”).

É importante perceber como retratamos personagens LGBTQIA+ nas diversas obras e como eles se relacionam com o estereótipo do “gay sarcástico, engraçado e venenoso”. Da mesma forma que não é estranho para nós mulheres, depois de anos, perceber que aquela personagem que a gente ama na verdade é super sexualizada. Cinthia acredita que além da misoginia, existe a questão do homem gay tentar se afirmar constantemente, com isso acaba reproduzindo esses comportamentos. Apesar de haver casos e casos, ela acredita que mulheres queer são muito silenciadas dentro da comunidade LGBTQIA+. Já ela, como mulher cis hetéro, não é nem ouvida.

4. Ingrid e o "você tem que se acostumar"

Assim como a maioria das mulheres citadas aqui, Ingrid teve contato com pessoas LGBTQIA+ na escola. Mas ela já sabia que fazia parte da comunidade desde os 11 anos. Foi também nessa época que sofreu os assédios que mais a marcaram vindo desses colegas de nicho social.

Através das chamadas “brincadeiras” um amigo que se identificava como um menino transexual, constantemente apalpava e agarrava suas nádegas sem sua permissão. “Foi bem invasivo. Não fui ouvida em vários momentos que falei que não me sentia à vontade”. Mesmo reclamando e negando os assédios continuavam acontecendo, sem serem repreendidos pelos demais amigos, cobertos pelo manto da “brincadeira”.

“Ele me disse que eu ficaria sozinha por não saber me calar.”

Em um certo momento de sua vida, Ingrid se viu como mulher bissexual, uma fase que muitas mulheres que se descobrem lésbicas passam, a da não aceitação. Receosa pela reação de sua família ela só se entendeu e se assumiu lésbica aos 15, depois de namorar uma garota. A partir daí entendeu que não havia nada de errado consigo.

Ainda no mesmo período do colégio, Ingrid teve que ouvir de outro colega gay comentários não solicitados sobre o seu corpo. Apontava que seus seios eram grandes e chamavam muita atenção. Comentava sobre seu comportamento, quando ela falava sobre algo que a incomodava, afirmando que ela não seria vista de boa forma. “Ele me disse que eu ficaria sozinha por não saber me calar. E ainda, que por ser mulher, devia me acostumar com comentários maliciosos”.

Em ambas as situações, além de ocasionalmente reclamar, Ingrid dava as típicas risadas amarelas, que muitas de nós já fizemos e ainda fazemos. Apesar de acreditar que sejam casos isolados, ela entende que os homens queer que fazem a manutenção desses comportamentos geralmente se vêem isentos de culpa, por não encararem como maldade. Uma ideia recorrente, em que o que importa é a intenção deles e não o nosso consentimento ou se nos sentimos à vontade.

Ingrid acredita que essas atitudes vindas dos homens LGBTQIA+ é falta de bom senso e afirma que a luta das mulheres dentro da comunidade é invisibilizada, muitas vezes colocada em segundo plano. Além da falta de bom senso, é um reflexo claro de uma sociedade que gira em volta de uma lógica patriarcal, onde o homem, independente de como ele se entende, acha que pode tocar em uma mulher sem sua permissão e comentar do corpo dela como bem entender. Como se fosse um quadro em um museu que ele não gostou muito.

Finalizando: o problema tem raiz profunda

A misoginia é histórica, surgiu no início da cultura agrária, assim que o homem entendeu que era preciso um macho para que as fêmeas engravidassem. A partir disso, a sociedade se construiu em torno do falo e do ser masculino. Não mais havia a ode ao corpo feminino, ao poder de gerar uma vida, a visão da mulher como algo para além de um receptáculo fértil.

Ao agredir uma mulher, não levar a sério o que ela diz, invadir seu espaço pessoal, descredibilizar suas reivindicações, a ter como competição, afirmar que seu corpo é nojento, o homem LGBTQIA+ contribui para uma lógica de ódio às mulheres.

Não percebe que é essa mesma ideia que o faz apanhar na rua, que tira sua boneca quando é criança, que o mata por usar maquiagem, pois a sociedade que vivemos, estruturada em uma noção de que tudo que vem do homem é o certo e é maravilhoso, faz com que ele odeie as mulheres.

* Cena do filme Meninas Malvadas. A frase na camisa do monstro da misoginia na ilustração da reportagem principal faz referência a frase dita no filme “às quartas usamos rosa”. Chamar alguém de Regina George (nome da personagem principal) refere-se a atitude de subjugar, difamar ou jogar indiretas maldosas a alguém.
Foto: Reprodução/Paramount Pictures | *Cena do filme Meninas Malvadas. A frase na ilustração faz referência a frase dita no filme “às quartas usamos rosa”. Chamar alguém de Regina George (nome da personagem principal) refere-se àatitude de subjugar, difamar ou jogar indiretas maldosas a alguém.
  • *Alguns nomes expostos nesta reportagem foram modificados para preservar a identidade das entrevistadas

Ódio ao que vem da mulher

Matéria de Cila Santos, da página QG Feminista, também aborda o que é a misoginia. Leia aqui

A homofobia é o filho amado da misoginia. A afeminofobia ou efeminofobia — repulsa ao que é feminino — anda de mãos dadas com ela. É impressionante como a manutenção da mulher como inferior levou ao ódio de tudo que remete à ela.

A efeminofobia nada mais é que o nojo ao feminino em um lugar (ou alguém) em que essa característica — segunda a lógica de hetenormativa (que marginaliza outras sexualidades que não a heterossexualidade — não pertence. “Vira homem”, “tá andando que nem mulherzinha”, “isso não é coisa de menino”.

Felipe Adaid, professor de Direito Penal na PUC de Campinas, em artigo intitulado Discutindo sobre a Efeminofobia, aborda a etimologia da palavra efeminofobia a entende como uma aversão a uma característica vinculada à mulher. Se falamos disso em uma dimensão da homossexualidade masculina, entendemos que é a aversão ao que há de feminino no homem.

Lucas Soares é professor e se declara como homem gay afeminado sem nenhum problema. Ele afirma que logo quando se entendeu parte da comunidade LGBTQIA+ viu essa diferença entre gays que seguem um padrão heteronormativo (social e mental) e gays que trazem em seu comportamento e vestimentas coisas comumente ligadas à mulher. “Esses caras (gays heteronormativos) olham pra quem é afeminado com certo desprezo. É muito interessante pra eles humilhar”.

Ao mesmo tempo que se agride e difama homens afeminados dentro da comunidade existe uma fetichização destes, tratados como objetos de prazer e que só servem para satisfazer. O famoso “essa é pra casar, essa é pra transar”. Não à toa dentro da própria comunidade há a reclamação de que os únicos casais gays que têm midiatização são os malhados, brancos e de classe média alta. Quando afeminado, geralmente é ligado à comédia.

João Pedro dos Santos é profissional na área de Comunicação e revela que já sofreu muito preconceito em aplicativos de relacionamento, como o Grindr, por também ter características afeminadas. “Esses homens padrões deixavam de responder, ou diziam que não curtiam afeminados, logo no perfil.”

O aplicativo Grindr, voltado para homens queer, possui mais de 3 milhões de usuários diários no mundo.

Ricardo Sabóia, professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador da área de sexualidade e gênero, entende em seu artigo Modos de usar: Uma investigação etnográfica do App Grindr que as preferências utilizadas em aplicativos como o Grindr — “só ativos”, “só passivos”, “não falo com afeminados” — reforçam estigmas presentes na comunidade no mundo offline também. Ao citar no mesmo trabalho Erving Goffman, antropólogo e sociólogo canadense, Sabóia reflete como essas “representações do eu’ trabalham com hierarquias sociais já bem estabelecidas e demarcam padrões e fronteiras que não existem só no online.

Lucas compartilha que já foi extremamente criticado por amigos próximos, também gays, pelo seu comportamento, por escolher usar um perfume mais doce, pelo comprimento do seu shorts, pela escolha de usar maquiagem. Os paralelos às críticas que uma mulher sofre no dia a dia são claros. O único jeito certo de se viver é o do macho.

João Pedro critica a postura da comunidade de uma “falsa militância” quando se trata de discutir a padronização estética em corpos gays. “O padrão é sempre o preferido. Na rede social se coloca ‘eu apoio afeminados’ e no aplicativo pensa ‘olha lá, mais um afeminado’ e o rejeita”.

Para Adaid, há diferença entre a homofobia e a efeminofobia. O homofóbico tem ódio a todo e qualquer homossexual, é algo mais genérico. O efeminofóbico é aquele que tem asco de qualquer coisa relacionado ao feminino, como se a masculinidade fosse a única forma válida de vivência. É curioso perceber que a efeminofobia e a misoginia vem de um mesmo cerne, a recusa daquilo que foge do que é socialmente entendido como o homem.

O grupo que sofre assédios e agressões devido a essa aversão é o mesmo que diz ter nojo do corpo da mulher. O mesmo que idolatra divas pop e afirma ter nascido de cesárea para passar longe de uma vagina. É muito comum vermos em diferentes obras midiáticas o gay afeminado que é engraçado, que manda indiretas, que fala mal da roupa de uma mulher, ou dos processos estéticos dela.

É o famoso “shade”, expressão comumente usada na comunidade gay e drag, que significa “jogar uma indireta, jogar um veneno”. O problema está no contexto desse shade e se ele atinge, de forma violenta, um grupo que é subjugado desde que o mundo é mundo. Seja por uma necessidade de se afirmar, de se reafirmar, de influência de personagens midiáticos, ou por pura e simplesmente fazer parte de uma sociedade patriarcal, este grupo ainda faz a manutenção da misoginia e diversas vezes a volta para si mesmo.

Cultura pop: pedagogia sobre o desamor ao feminino

A drag Victoria Scone, primeira mulher cis a aparecer no reality RuPaul’s Drag Race, sofreu ataques da comunidade LGBTQIA+. Leia mais aqui

A misoginia é uma parte crucial do machismo e da sociedade patriarcal. Não é à toa que ícones femininos da cultura pop são mulheres que odeiam mulheres ou que se mostram “diferentes” das demais. A gente espera que a misoginia seja algo praticado só pelos homens, mas ela está internalizada dentro de várias de nós.

Eu mesma, quando era adolescente, adorava dizer que “não gostava das mesmas coisas que outras garotas”, porque a gente tem a visão que hobbys comumente ligados à mulheres são coisas ruins ou sem tanta importância. Ainda bem que a gente evolui e a arte também, mas não foi sempre assim.

Em um dos clássicos dos anos 70, Grease: nos tempos da brilhantina, temos a personagem de Olivia Newton-John, Sandy, mudando toda a sua personalidade, maneira de se comportar e vestir, para conquistar o personagem de John Travolta. Essa narrativa se repete em diversas produções. Recentemente a Netflix estreou um de seus filmes de Natal intitulado Um Match Surpresa, onde temos direito a um catfish — criação de perfis falsos nas redes sociais com o intuíto de se relacionar com alguém — duplo e a personagem principal fingindo ser quem não era pra conquistar um cara.

A personagem Sandy, vivida por Olivia Newton-John, em comparação com o início e o final do filme.

Outro exemplo, dessa vez da cultura nerd — da qual consumo muito -, e que é quase como um ataque pessoal pra mim, é a cena da Princesa Léia, de Star Wars, acorrentada e de biquini, sendo hiper-sexualizada na narrativa. Um ícone feminista, uma personagem de destaque em uma das maiores franquias da história e que ainda assim não conseguiu escapar da objetificação que Hollywood coloca sobre as mulheres.

Carrie Fisher, atriz que interpreta a personagem Leia Organa na série de filmes Star Wars. À esquerda, ela com um traje rebelde. À direita, com o biquíni que virou símbolo sexual nerd.

Entrando em outro nicho, no mundo gamer, experimentamos um ambiente super tóxico e machista, de forma escancarada. Eu tenho contato com o mundo dos videogames desde criança, sempre adorei. É importante dizer que sempre estivemos presentes nesse universo. Nos dados atuais sabemos hoje que mulheres formam 51,5% dos gamers no Brasil, segundo a pesquisa PGB Brasil 2021. Mas os homens ainda insistem em afirmar que esse universo é só deles. Isso se deve porque muitos dos produtos ainda são feitos de homens para homens.

Este ano, a Activision Blizzard, empresa de games como Call of Duty e Diablo, foi palco de inúmeras acusações de assédio contra os gestores da empresa e outros funcionários. As funcionárias expuseram o fato de assédios sexuais ocorrerem de forma muito natural dentro da empresa. Em um dos relatórios das denúncias há o caso de uma funcionária que cometeu suicídio após uma viagem a trabalho com o supervisor.

Toda essa lógica de inferioridade feminina nessa indústria se reflete nos games com personagens clássicas hiper sexualizadas como as lutadoras de Mortal Kombat, Bayonetta e mais recentemente a personagem Quiet de Metal Gear V. Mesmo quando se coloca uma personagem feminina muito forte e protagonista, como a Samus da série Metroid, a indústria desliza. Em uma das versões do game, se você terminasse a fase em determinado período de tempo, a personagem aparecia só de biquíni.

A personagem Quiet (silenciosa, em inglês) de Metal Gear V à esquerda e Bayonetta, da série de jogos de mesmo nome à direita.

Para não deixar a pauta de lado, outro exemplo que trago, muito conhecido no mundo gay através das drag queens e que foi tirado do nicho pelo programa Rupaul’s Drag Race, é o termo “fishy”. Fish do inglês, que significa peixe, já fishy é utilizado para se referir a uma drag queen que montada se assemelha muito a uma mulher cisgênera — pessoa que se identifica com o gênero designado ao nascer. A expressão remete ao odor que a vagina teria e que, teoricamente, se assemelha ao cheiro de peixe.

Tido como um elogio dentro do universo, o termo é algo extremamente misógino. Mulheres crescem acreditando que suas partes íntimas são nojentas e passam a vida toda utilizando produtos para diminuírem seus odores naturais, o que pode acarretar em diversas doenças. Ter a genitália feminina como algo nojento é algo tão comum para esse grupo que você encontra inúmeros relatos de mulheres falando sobre isso na internet.

É impossível trazer todos os exemplos sexistas nos conteúdos audiovisuais pois são vários e constantes. Desde que o primeiro pergaminho foi escrito, já havia algo de misógino nele.

Sendo essas obras produções de uma sociedade, tem nelas impressos os mesmos preconceitos. Hoje, com muitas mulheres fazendo parte da causa feminista os papeis midiaticos da mulher tem sido cada vez mais discutidos. Desde o uniforme de uma super heroína à presença de mais mulheres na política, cada passo é significativo. Crescer sabendo que você não é apenas uma coadjuvante ou um enfeite bonito faz muita diferença.

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Reportagens Especiais

projeto de extensão do Observatório da Vida Agreste (OVA), Curso de Comunicação Social da UFPE/Centro Acadêmico do Agreste (CAA)