Água: um bem para quem pode pagar
Enquanto as empresas chegam a gastar até 70 litros do recurso na lavagem de uma única peça, moradores e moradoras da cidade ficam dois meses sem nada nas torneiras
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra)
(O cão sem plumas, João Cabral de Melo Neto)
Em Toritama, a chegada das lavanderias de jeans em meados dos anos 1980 evidenciou falhas no sistema de abastecimento e distribuição de água: é comum viver dias, até mesmo meses, sem nada nas torneiras. Isso nos bairros mais próximos ao centro da cidade — em lugares mais afastados como Deus é fiel, Coqueiral e Independente, a água nem chega. A alternativa para as famílias, que diariamente precisam economizar o recurso (chegando a tomar banho dentro de bacias a fim de reutilizar a água), é abastecer suas cisternas com caminhões pipas que custam em média entre R$ 150 a 200. Sim: o acesso ao líquido de maior qualidade (pelo menos em tese) está disponível somente a quem puder pagar mais. Segundo Hilário Siqueira de Lima, autor da dissertação As lavanderias de jeans de Toritama: uma contribuição para a gestão das águas, o município é um dos campeões em escassez de água no Estado. No trabalho, ele evidenciou que 93% do recurso usado nas empresas de lavagem é comprado justamente dos caminhões pipa.
Na cidade, é muito comum ouvir reclamações relacionadas à falta de abastecimento, principalmente em ruas onde há lavanderias. A razão: a vazão e a pressão que antes davam (mal) conta de abastecer áreas apenas residenciais passaram a ser “divididas” com estas empresas. Em ruas como a Surubim, por exemplo, a água, quando chega, sai em gotas das torneiras. Não enche as cisternas e só volta 30 a 40 dias depois. A saída: comprar. Em um país com inflação acima dos dois dígitos e cesta básica corroída por conta da alta dos preços, é outro problema que uma população empobrecida precisa enfrentar. Júlio*, que mora na periferia da cidade, diz que compra água para passar o mês, já que a Compesa, empresa de abastecimento estadual, só destina o recurso para a sua rua a cada 15 dias.
No loteamento Arlindo, a situação é mais dramática: a água nunca chegou. Rafael Santos, 33 anos, vendedor, conta que mora há catorze anos no bairro e desde sempre compra água. “Primeiro, nem rede de saneamento existe aqui. O encanamento central que vem da adutora de Jucazinho passa a 200 metros da minha rua. Gasto em média R$ 200 por mês, algo que acaba comprometendo a minha renda”. A água que vem em caminhões pipas é armazenada em uma cisterna, reservatório comum na casa de famílias do Agreste pernambucano.
Na casa do cantador João Joaquim, 84, no Centro, a família chega a ficar um mês sem receber água. Ele diz que em outras comunidades mais distantes, a situação é ainda mais dramática: são até dois meses sem recebê-la. “Às vezes temos que tomar banho dentro de uma bacia e aquela água do banho usamos para outras atividades”, explica. Há relatos de casos em que a água não chega devido a problemas na manutenção dos hidrantes, o que compromete o abastecimento das casas. Carlos*, conta que, depois das lavanderias, bairros como Cohab e a rua Surubim passaram a sofrer: o recurso não chega até às últimas casas e, quando chega, é de forma lenta. Passam mais de um mês sem água nas torneiras.
ADUTORA DO AGRESTE: UMA LENDA?
A Adutora do Agreste, obra de responsabilidade do governo federal, governo estadual e executada pela Compesa, surge nesse cenário de seca como uma possível solução de segurança hídrica. No entanto, o empreendimento, que teve início em 2013 e deveria ter ficado pronto em 2015, ainda não foi concluído. O investimento da obra foi de R$ 3,2 bilhões: ele compreende o eixo leste da transposição, que leva água do Rio São Francisco do município de Floresta (sertão de Pernambuco) até Monteiro (Paraíba). São 217 quilômetros de canal construídos pelo governo federal, que também ficou a cargo de viabilizar o ramal do agreste, um canal que vai levar a água do eixo leste da transposição até a barragem do Ipojuca, em Arcoverde, no Sertão do estado. Esse trecho, com 70 quilômetros, ficou pronto no ano passado. É dessa barragem que a Compesa deve pegar a água e, depois, tratá-la e distribuí-la para quase 70 cidades do agreste. Uma malha de tubulações deve percorrer 1.500 quilômetros. Há oito anos, a promessa era garantir água nas casas de dois milhões de moradores de municípios do Agreste e do Sertão. Até agora, somente sete cidades contam com o abastecimento desse novo equipamento.
Questionada sobre o que deu errado na execução da obra e por que Toritama, que deveria ser uma das primeiras cidades atendidas pela adutora, ainda enfrenta tantos problemas com o abastecimento de água, a Compesa culpabiliza a falta de repasses federais. Em nota divulgada ano passado, a companhia afirmou que, durante todo ano de 2021, a gestão federal não repassou “nenhum único centavo ao Governo de Pernambuco para o andamento das adutoras”. Em abril de 2021, o governo federal vetou o repasse de R$ 161 milhões previstos para a obra. Curiosamente, em outubro do mesmo ano, Jair Bolsonaro esteve em Sertânia para inaugurar a obra, que ainda está sem funcionar. Sem receber, diversas empresas contratadas para executar a obra abandonaram os trabalhos. A segunda etapa, que vai levar água para 45 municípios, ainda nem começou.
Também por meio de nota, a Compesa diz que somente a partir de julho de 2023 a “capital do Jeans” receberá água da Transposição do Rio São Francisco por meio de outras obras hídricas que são as Adutoras do Agreste, Alto do Capibaribe e Serro Azul. De acordo com a companhia, o sistema de abastecimento de água de Toritama é composto por uma captação na barragem de Jucazinho, localizada em Surubim, em uma rede de distribuição que alcança 80% do município.
Enquanto a solução não chega, diante das inúmeras reclamações feitas diariamente pela população, outros caminhos são percorridos. O vereador da Edmilson Dionísio (conhecido como Loló, PSD) fala que chegou a realizar uma comitiva chamada “Vereadores de Toritama” com o intuito de levar as questões da população à Compesa, que está ciente dos apertos enormes passados principalmente por quem já não tem mais como comprometer seus baixos salários com um recurso que, em tese, deveria ser universal. “Na Compesa, tudo o que conseguimos foram promessas”, diz Loló. Enquanto isso, as torneiras seguem fechadas.
*Os nomes de alguns personagens foram modificados a pedido dos mesmos
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