“O rio era a vida da gente”
Em Toritama, cidade conhecida como a “capital do jeans”, a população se acostumou a ver o Capibaribe sujo e a mudar de cor de acordo com dos despejos das lavanderias — mas nem sempre foi assim
Maria José Souza e Maíra Welma da Silva
Infértil, estéril e que não experimenta emoções.
Foi assim que, já em 1950, João Cabral de Melo Neto percebeu a situação do Rio Capibaribe. Ali, escrevia sobre o curso de uma água que também contava sobre vida, morte, flores, miséria e peixes*.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Oitenta anos depois, alguns trechos do poema O cão sem plumas soam especialmente amargos. O rio, no final, soube do azul e do rosa — mas não os da chuva ou das fontes, e sim das lavanderias que despejam nele os rejeitos da lavagem têxtil.
Às vezes, ele também está vermelho. Outras vezes, preto. O colorido que poderia até sugerir alguma beleza na verdade guarda um tanto de destruição. Para a população de 47 mil habitantes de Toritama, agreste de Pernambuco, o Capibaribe deixou de ser espaço de sustento, de pesca, de lazer, de descanso. Os peixes e a brisa rarearam.
Mas nem sempre foi assim.
“Eu cheguei a beber água do rio. A minha mãe lavava roupas nele”, lembra Leonardo Ferreira, 38 anos, agricultor.
“Antigamente, o Capibaribe funcionava como entretenimento. Lamento não poder tomar banho e pescar nele com meu filho”, fala José Roque, 38 anos, historiador.
“Eu conheci esse rio da forma como está hoje… sinto não poder mergulhar nele”, relata Carol Gonçalves, 25 anos, vereadora e ativista.
O rio se tornou memória. E desejo.
Quem nasceu e se criou na cidade, como o músico João Joaquim Nunes, 84 anos, o João do Cavaquinho, ainda quer vê-lo como antes — sim, as distopias sempre cedem lugar ao sonho. Ele conta que chegou a pescar e tomar banho no Capibaribe e acompanhava suas secas e cheias. “Nos anos 40, eu era garoto e lembro desse rio despoluído. A gente pescava nele, tomava banho, bebia das suas águas, não tinha os problemas que existem hoje. Se pescava muito, tinha o capim que era usado na alimentação do gado. Após alguns anos, a cidade começou a crescer e o rio chegou a um ponto que ficou sem vida”.
A paixão do músico pelo Capibaribe está presente em duas composições que ele criou e cantou para a reportagem quando foi entrevistado. Ambas retratam a relação da cidade com o rio e lembranças de uma época que, se já parecia ameaçadora para o poeta João Cabral, ainda era doce para a criança — ela, também, um futuro poeta.
Em Rio Sofredor, ele diz: “a sua água era pura e cristalina/hoje está em ruína, sem ter uma solução/ela tem o direito de ser tratada e não voltar envenenada para dentro do nosso rio”. Na segunda, Rio Capibaribe, quase uma versão musical e sintética de O Cão sem plumas, ele vai contando o percurso do Capibaribe desde seu nascimento na Serra do Jacarará (divisa de Poção e Jataúba), passando pelo seu sangramento nas barragens de Poço Fundo e Jucazinho, além das cidades de Toritama, Santa Cruz do Capibaribe, Limoeiro, Carpina, Paudalho, São Lourenço da Mata. São 42 municípios até o rio se encontrar com o mar, em Recife.
Escute aqui as canções de João do Cavaquinho
Os fenômenos apontados pelo músico fazem parte do próprio desenvolvimento precarizado da cidade, que começou sua atividade econômica justamente às margens do Capibaribe. De acordo com o historiador José Roque, 38, que viu de perto a chegada das lavanderias na cidade na década de 1980, o rio deixou rapidamente de ser a grande área de lazer local. “Hoje é um lugar sem acesso, justamente por causa da poluição. A gente pode até chegar nele, mas não se pode ter contato com a água como antes”. Os pais do historiador nasceram na cidade e sempre mantiveram uma relação muito forte com o Capibaribe. “Minha mãe fazia piquenique às margens do rio. Levávamos frutas, arroz e feijão. Enquanto eu e meus primos brincávamos, as mulheres lavavam roupas e os homens jogavam futebol”.
As contradições típicas do capitalismo se fazem presentes também nesse jogo entre passado reconstruído e a realidade imposta pela indústria local. José Ronevaldo, 59, gerente da Céu Azul, uma das maiores lavanderias da cidade, lamenta o fim da relação com o Capibaribe — em grande parte imposta pela própria atividade que o sustenta. “Se o rio estivesse limpo, a água com certeza seria utilizada também para matar a sede, porque nem todo mundo tem condições de comprá-la”, diz ele, se referindo a uma época na qual o leito do Capibaribe era procurado por quem enchia potes e jarras e a água era bebida pela população e utilizada nos afazeres domésticos.
Era o caso da família da comunicóloga Valderiza Pereira, 33, que nasceu na então futura Capital do Jeans. Os problemas no abastecimento de água, uma realidade que piorou — e muito, como você lê nesta matéria — eram das principais razões dessa busca contínua, diz ela, que também lembra da pesca como uma atividade comum para os moradores da cidade. “Nos momentos de cheias do rio, as famílias que moravam às margens iam pescar, inclusive minha avó e meu tio.” Ela chegou a mergulhar ali quando o leito começava a sentir a chegada das primeiras lavanderias. “Lembro de um cheiro forte que a água tinha, provavelmente relacionado ao início da poluição”.
O Capibaribe, então, era um lugar localizado entre o deslumbre e sobrevivência.
Angelina Cabral, 56, mãe de Valderiza, era uma das mulheres que se reuniam para lavar roupas à beira do rio. Na verdade, era uma das meninas: tinha apenas 12 anos quando começou a trabalhar. Trocava as lavagens por comida. Com o tempo, transformou a rotina diária de ir até o local em uma forma de garantir o sustento. Exerce até o hoje a profissão, mas não mais no rio. Trocou as margens do Capibaribe por áreas de serviços nas casas de moradores da cidade. “O rio era a vida da gente”.
A vereadora (MDB) e ativista Carol Gonçalves, 25, sublinha que o Capibaribe tem uma importância não só econômica, mas, como ouvimos nos relatos coletados, também sentimental. “Ele [o rio] desperta um sentimento de pertencimento. Faz parte da história e desenvolvimento da cidade. Nesse rio as pessoas pescavam, lavavam roupas, sobreviviam de fato do Capibaribe. Hoje, diante da realidade que ele se encontra, isso não é possível”.
DESMONTAR A DESTRUIÇÃO
O pesquisador Mário Benning, mestre em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), fala que, inicialmente, o Capibaribe era fonte também da agropecuária, prática econômica local substituída pela indústria têxtil. Com ela e a urbanização (precarizada) de Toritama, o rio começou a ser fortemente degradado. Para ele, são necessários alguns projetos vitais para que sejam feitas as recuperações tanto da bacia do Rio Ipojuca quanto da bacia do Capibaribe. “Esses projetos envolveriam o saneamento básico da cidade e a recuperação dos afluentes para que o volume de água aumentasse. Para isso, é necessária a ampliação da fiscalização a respeito da contaminação ocasionada pelos descarte, bem como oferecer água tratada e um controle para coibir o desperdício e a poluição, com atuação dos órgãos públicos competentes” (leia mais sobre o que fazer para fazer o rio respirar novamente aqui).
Para Carol Gonçalves, é necessária uma mudança na forma social e econômica de se relacionar com o rio. “Se pensarmos no modelo de despoluição dos rios de outras cidades, Toritama também tem potencial para conseguir”, explica. O historiador José Roque faz coro: “apesar de tudo, o rio não está 100% morto. Com o desenvolvimento de um projeto é possível recuperá-lo.”
Olhando o passado para recuperar o futuro, parece que sim.
Leia mais:
*Análise presente na pesquisa Literatura e representação da realidade no poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto (texto de José Elias Pinheiro Neto, Universidade Estadual de Goiás)
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